“Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas, não deve ter a cegueira que faz fazer sentir”, Fernando Pessoa.
Antes de avançar nas linhas com a participação de Dulcinete de Freitas, 83 anos, ‘Dulcinha’, nesse espaço cujas mulheres são minha atenção até o próximo dia 8 de março, devo dizer a vocês que não sabia por onde começar.
Em primeiro lugar, porque tenho ojeriza à prostituição [não à prostituta, pessoa como outra qualquer] e são tantos os tipos, mas em particular, a que deveria tratar com dona Dulce.
Contudo, passadas mais de quatro décadas do fim do ‘Roda Viva’, o cabaré mais famoso de Paulo Afonso, “Porque tinha as mulheres mais bonitas e ordem, que comigo é assim” ressalta Dulce, relembrando sem perder detalhes dos tempo do salão; eu não posso, como diz Fernando Pessoa, ver a vida de uma pessoa com tanta riqueza apenas pela sua fase voluptuosa.
Dulcinete, por seu turno, vendo a minha falta de jeito, não negou seu passado conhecido de muitos, não disfarçou o que fez, não buscou maquiar a natureza dos cabarés, e me mostrou uma infância de violência, uma vida de aventuras; a tentativa de homicídio que lhe aleijou os dedos da mão, e seus infinitos amores.
Uma vida errática?, a vida que ela quis ter. Não nos cabe julgar. Dulce não titubeou quando eu perguntei a causa da decadência dos cabarés [já justificando que as leis avançaram e felizmente combatem à prostituição infantil, e de quebra o tráfico de drogas infiltrado em muitos prostíbulos], interrompendo-me ela cravou: “O que acabou com cabaré foi a mulher passar a fazer na rua mesmo.”
Nosso encontro aconteceu nesta quinta-feira 08, em sua casa. Cheguei e a encontrei brava comigo, esperando para o café da manhã. Cuidava dos passarinhos. Dulce espera a homenagem de cidadã pauloafonsina que lhe prometeram. Aliás, esperamos que saia ainda este ano.
Foi tanta coisa dita por Dulce com os pormenores mais ‘íntimos de nós dois’, que vou apenas disponibilizar uma parte do áudio, não é possível avançar com o restante da gravação. E para traçar o retrato de um tempo, vamos dividir o texto em capítulos, como fosse um folhetim, ou melhor: uma minissérie.
CAPÍTULO I: “Dulce se perde na vida”
São Bento do Una -Pernambuco, 1948.
“Eu nasci no dia 23 de junho de 1935. Minha mãe era de Monteiro-Paraíba, e meu pai pernambucano de São Bento. Quando eu tinha treze anos de idade minha mãe me chamou de rapariga; eu cheguei em casa com os cabelos cheios de folhas de mato [eu fiquei escondida nos matos para fazer medo as meninas], mas minha mãe disse que eu estava era com os machos.”
Meninota, Dulce apanhava muito, o pai nunca batera, sim, uma vez só e por insistência da mãe. Quando aconteciam as surras uma das irmãs ia ao seu socorro e a outra ‘achava bom’ e assim ela foi crescendo ouvindo que não daria para o que preste.
“Até que um dia eu resolvi e fui me oferecer para o primeiro que me aparecesse; encontrei pessoas que conheciam meus pais. “Sai com essa menina, tais doida!, eu conheço teu pai”, lembra ela.
Eis que esbarra num caminhoneiro de Recife:
O primeiro, o desterro, a vida…
“Era um cabra bonito e me mandou ir ao paredão, ficamos lá e depois quando eu cheguei em casa, mandei a vizinha ir dizer: ‘você vai dizer a minha mãe que ela me chamou de rapariga, eu não era não, mas agora eu sou… Foi um choro’; eu me arrumei, peguei uma bolsinha e saí de estrada afora, de São Bento do Uno, a pé, como daqui em Delmiro Gouveia-AL, porém, me pegaram no caminho, a polícia me pegou e me levou de volta para casa; meus vizinhos gostavam muito de mim, mesmo depois dos cabarés, eu andava com as filhas, porque eu respeitava muito; eu fiquei em casa, mas levei muita pisa, mamãe era muito ruim; por isso eu fiz tudo aqui em Paulo Afonso, cuidei dela, perdoei.”
Atualização: Dona Dulce hoje vive no Lar Vicentino, no Bairro Perpétuo Socorro, a mudança ocorreu após ela sofrer um AVC.
Texto publicado originalmente em 11/02/2018 no site PA4.com.br
Ouça Dulce:
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